Degustação:
Pavão Mysteriozo
Nunca gostei muito de novelas de televisão, mas
Saramandaia, de Dias Gomes, foi uma exceção. Acho que passou em 1976, quando eu
tinha uns doze anos de idade. Seu estilo era realismo fantástico, tinha
personagem que voava, com asas e tudo, outra gorda que explodia de tanto comer,
outra que pegava fogo de verdade de tanta excitação e outra de cujo nariz saíam
formigas.
Mas o que me capturou para sempre foi a música de
abertura: “Pavão Mysteriozo”, do grande músico e filósofo Ednardo. Ele
não sabe, mas sua música influenciou profundamente a minha maneira de pensar,
sobretudo a respeito da morte.
Em determinado trecho ele diz:
“... Me poupa do vexame de morrer tão moço, muita coisa
ainda quero olhar”.
Essa frase é tão sábia que, mesmo com apenas doze anos de
idade, ficou carimbada na minha mente e nunca mais saiu, para minha felicidade.
Essas palavras sintetizam tudo o que eu sinto e sempre senti a respeito da
morte: nunca a temi, em idade alguma e muito menos agora que já não sou mais
jovem. O problema com a morte não era o medo, mas sim o vexame, a vergonha de
ser levado por ela antes do tempo de amadurecer.
Achei que o Ednardo foi genial ao usar a palavra vexame
para qualificar a morte ainda na juventude. Nunca ouvi nem li nada parecido.
Ele captou exatamente o espírito da questão: a pessoa que suplica ajuda ao Pavão
Mysteriozo é corajosa e está disposta a lutar e a enfrentar os perigos da
vida, como sugere o restante da letra desta obra-prima, mas sabe que sempre
existe a possibilidade de morrer na batalha, de morrer no meio do caminho, de
morrer sem conseguir ficar velho. Isso seria motivo de vergonha, não de terror.
Seria uma frustração perder o futuro, perder todas as coisas que ele ainda
queria olhar.
Essa frase me acompanhou a vida toda desde o minuto em
que a ouvi, mas ela fez muito mais sentido na véspera do meu aniversário de
quarenta anos. Eu fiquei acordada esperando passar a meia-noite para ter
certeza de que havia conseguido chegar aos quarenta. Já aprendi que muita coisa
pode acontecer em alguns minutos e nossa vida pode mudar completamente num
piscar de olhos, então quis esperar para me certificar de que eu realmente
estava lá, estava viva e chegara o dia do meu aniversário; aquele minuto
fantástico para mim significou uma passagem de vida: eu havia deixado a
juventude. Quando os ponteiros do relógio marcaram meia-noite, senti um alívio
imenso e uma felicidade que não posso traduzir em palavras, pois eu fora
poupada do vexame de morrer tão moça, já que não era mais moça. Não preciso
dizer que chorei muito, de tanta felicidade.
Daqui para frente, é lidar com outra perspectiva da morte,
que sem dúvida está mais próxima, mas agora eu sou uma envelhescente. Depois
daquele minuto mágico, a morte, quando vier, já não causará mais vexame.
É,
agora estou em vantagem, pois já não tem jeito de eu morrer tão moça, mas pode
ter certeza de que muita coisa ainda quero olhar!
Nunca Desista dos Seus Sonhos? – Parte II
Por falar em sonhos improváveis, eles podem ocorrer em
qualquer idade e não apenas na primeira infância.
Na adolescência, aos 13 anos, fiz uma das minhas inúmeras
escolhas profissionais ao longo da vida e decidi que seria chacrete quando
crescesse. Foi isso mesmo que você leu! As chacretes eram aquelas moças que
dançavam no programa do Chacrinha, vestidas com maiôs de paetês e calçadas com
botas prateadas até a metade das coxas. Quilos de maquiagem, acessórios e
cabelos volumosos completavam aquela overdose de enfeites, e as danças
sensuais e desinibidas cativaram-me completamente.
Naquele momento, aquele era meu ideal de feminilidade e
beleza e, como eu gostava muito de dançar, deduzi que seria a profissão ideal
para mim. Não perdia um só programa do “Velho Guerreiro” e nos intervalos
corria para repetir diante do espelho todas as coreografias das minhas musas.
Realmente fiquei muito boa nisso. Eu praticava balé clássico e tinha facilidade
para aprender qualquer dança, então foi lógica a conclusão da minha natural
vocação.
Cheguei para minha mãe e disse:
— Mãe, quando eu crescer quero ser chacrete. Não vou
cursar faculdade.
Ela, que era professora e formada em três cursos
superiores, nada respondeu. Não fez cara de espanto, não me contrariou, nada,
nada. Só falou “Hã, tá” e não prolongou o assunto.
O tempo passou. Dois anos depois, aos quinze anos, eu já
havia mudado de ideia e decidi cursar medicina. Não lembro quando o Chacrinha
morreu, mas acho que nessa época o programa dele nem existia mais. A profissão
de chacrete só continuou a existir na minha imaginação de fã.
Novamente cheguei à minha mãe e perguntei-lhe por que ela
não retrucou quando eu disse que queria ser chacrete quando crescesse. Ela,
genial como sempre, apenas respondeu:
— Eu sabia que você não iria crescer!
Ficamos às gargalhadas! De fato, parei de crescer aos treze
anos e tinha, no máximo, 40 quilos. Realmente não prestei atenção a este
detalhe: as chacretes eram opulentas! Pequena e magrinha como eu era, jamais
conseguiria esse emprego!
Mamãe era ainda mais baixinha do que eu, então ela já
sabia que eu não seria nenhum mulherão, pois não tinha condição genética para
isso.
Alguns sonhos devem ficar apenas no seu próprio mundo,
que é a terra da imaginação, num cantinho especial e acolchoado de nosso
coração e de nossas mais carinhosas memórias.
A
Fonte da Juventude
“Mocidade.
Mas mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir.”
João
Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas
Os
alquimistas buscavam a fonte da eterna juventude, entre outras coisinhas básicas
e simples desse tipo.
Essa é
a fonte que muita gente busca e, surpreendentemente, encontra com a maior
facilidade. Na verdade a fonte da juventude nem precisa ser procurada, ela é
dada de graça a todos. Não existe nada oculto e misterioso neste mundo e tudo
está tão revelado, tão óbvio, na nossa frente, tudo pronto para o uso. Nós é
que não conseguimos enxergar ou ler direito a vida e, às vezes, confundimos as
coisas.
É na
fonte da juventude que a maioria das pessoas mergulha, porém elas se esquecem
de que essas águas estão sempre fadadas a diminuir, ou seja, essa é a fonte que
seca a cada dia e quem permanecer nela ficará desidratado e morrerá de sede.
Talvez o melhor seja realmente descobrir e identificar essa fonte, mas para
sair dela o mais rápido possível!
Parece-me
melhor e mais garantido mergulhar o quanto antes na fonte da velhice, pois essa
é a fonte cujas águas aumentam com o passar do tempo. Nela você estará seguro.
Nunca haverá sede e sempre haverá água em abundância; seu corpo não se ressecará
e sempre será refrescado; se a fonte encher demais, você terá tempo suficiente
para aprender a nadar; se for água demais para você, compartilhe-a com os
outros; quanto mais velho você estiver, mais água brotará da sua fonte e será
bom que os jovens sedentos venham beber daquilo que você puder oferecer.
Quanto
mais cedo aceitarmos a velhice e mergulharmos na sua fonte, menos o tempo nos
ressecará. Não brigue com o tempo e ele não brigará com você; desafie-o e você
será destruído, pois não existe rejuvenescimento; o tempo que passa não volta
exatamente igual e isso é uma das maiores sabedorias do universo.
Pense
no pior momento da sua vida, no acontecimento mais trágico e doloroso. Existem
na vida alguns minutos que nós achamos que nunca passarão ou que nós não
sobreviveremos a eles. Mas nós sobrevivemos, o tempo ameniza a dor das feridas
e voltá-lo significaria sofrer pelas mesmas coisas, exatamente da mesma
maneira. Eu não quero isso! Acho que seria um dos piores castigos que a vida
poderia nos dar. Entendo que nós, seres humanos, não aguentaríamos; não somos
tão fortes assim. Já que a vida tem dificuldades, pelo menos que não sejam
repetidas, afinal estamos no mundo para progredir.
Alguém
poderia argumentar que precisamos lembrar ou rever nosso passado para
compreender seu significado e aprender coisas para o futuro, e com isso eu
concordo totalmente, mas vejam que esse tipo de atitude é totalmente diferente
de querer voltar no tempo, seja por qual motivo for: rejuvenescer, consertar
algum erro, evitar uma tragédia e assim por diante.
Concordo
que a vida é cíclica, que tudo que vivemos e fazemos permanece em nós, e esses
atos sofrem metamorfoses ao longo da nossa vida, retornando periodicamente sob
formas variadas, mas muitas coisas boas e más se repetem, quem sabe porque
sejam nossa missão, talvez para nos ensinar algo ou para serem corrigidas. O
fato é que o passado e o futuro estão sempre em nós, ao mesmo tempo.
Vamos
aceitar o passado como uma aquisição, como o tempo que já é nosso, o tempo que
já vivemos e que ninguém nos tira mais.
Com a
memória podemos passear à vontade nesse tempo passado e mudar o significado de
várias coisas que já aconteceram, mas principalmente mudar nosso sentimento em
relação a elas. Só assim podemos mudar o passado em nós, e é isso o que
importa, é isso que pode aliviar nossas dores.
Na vida
só existem duas certezas: a morte e o tempo que passou. Essas são nossas duas
garantias, as únicas coisas que temos como certas. Por que então não as usarmos
como referências firmes para nossas vidas? Por que as pessoas evitam tocar
nesses assuntos se eles são os nossos dois maiores presentes recebidos? São as
duas referências mais válidas e sólidas, diante das quais tudo se relativiza e
que nos fazem ver com maior clareza o que é ou não essencial para nossa
existência.
Por que
considerar o tempo que passou como aquele que não temos mais, quando na verdade
esse é o único tempo que realmente temos, pois é o que já vivemos e ninguém
mais pode tirá-lo de nós? Não sabemos se teremos tempo futuro, ninguém sabe se
vai morrer amanhã, mas todo mundo que hoje está vivo sabe que estava vivo
ontem. Até o presente minuto você teve sua vida, mas o futuro não nos pertence.